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domingo, 4 de março de 2012

Os bons companheiros


Em meio a um rebanho ruidoso de 1.132 ovelhas que pasta disperso pelos campos da fazenda Juruti, no município de Piacatu, a 55 quilômetros de Araçatuba, oeste de São Paulo, um único cão, de grande porte, branco e peludo, caminha soberano e vigilante. Urso, da raça pastor maremano abruzês, foi adotado com dois meses de idade. Em agradecimento à acolhida, passou a oferecer sua proteção solitária e - considerando o número de animais sob sua escolta - quase heroica. Sob o sol que escalda a região em janeiro, durante o dia ou às portas da noite, interrompendo seu sono ali mesmo na pastagem, junto às ovelhas e alheio ao luxo de um canil, ele enfrenta outros cães, ladrões ou o mais temido dos predadores: a onça.


Na Juruti, Urso cumpre sozinho a missão que cada vez mais maremanos, como são chamados, vêm desempenhando à frente de criações de ovinos em distintos estados do Brasil: protegê-los, simplesmente, de diferentes ameaças. Sua experiência como a 'ovelha' forte do grupo é curta, de pouco mais de um ano e dois meses, mas suficiente para mostrar que numa mesma personalidade são compatíveis a docilidade e o instinto de defesa. Que o diga Edvaldo Sérgio Ressurreição, 37 anos, há 14 administrador da propriedade paulista. Antes da chegada de Urso, ele perdia entre cinco e seis ovelhas por mês. Com o cachorro, o prejuízo foi reduzido a uma média de duas cabeças mensais.

'Quando está tudo quieto e ele ouve algum barulho, começa a circundar o grupo até que todas as ovelhas estejam agrupadas. Depois, se senta no meio delas e late sem se levantar', explica Edvaldo. Para intimidar o felino, o único recurso utilizado por Urso é seu latido forte. Parece que, como na história do menino-lobo, que pela convivência com aqueles mamíferos de quatro patas acredita ser um deles, Urso também assumiu a idéia de ser mais um carneiro.

Edvaldo Ressurreição orienta os border collies com palavras em inglês e apito no pastoreio de ovelhas
Exemplos disso não faltam. Na hora de levar o rebanho ao curral, não é necessário ordenar que o cachorro se una ao grupo. Durante a vermifugação, Urso faz o mesmo percurso que os animais, com a diferença de que não recebe as injeções. Dormir, comer e inclusive parir são funções desempenhadas junto com as ovelhas. A gramínea, no entanto, é substituída pela ração. 'A gente não leva ele para casa. Ele dorme no mato, com todos os outros', comenta Edvaldo, que já planeja até uma casinha com rodinhas para acolher e levar de um lado a outro os filhotes que Ursa, a fêmea de oito meses que também cresce entre os animais, dará à luz algum dia.
Urso reina sozinho na fazenda Juruti, mas não é o único, nem o primeiro maremano a assumir o papel de guardião de rebanhos em fazendas brasileiras. O responsável pela introdução da raça no Brasil, em 1992, foi Luiz Cezar Fernandes, empresário que desde 1988 cria ovelhas santa inês na fazenda Marambaia, região de Petrópolis, RJ. 'Eu tinha um problema grande: a propriedade fica literalmente no meio da cidade, e o rebanho sofria ataques de cachorro o ano todo', lembra Cezar, que na época chegou a contabilizar cerca de 250 cabeças abatidas por ano. Na busca para dar um basta às perdas, ele descobriu os maremanos, e o curioso caminho percorrido por seus ancestrais até as pastagens brasileiras.

 
Na fazenda Juruti, em Piacatu, o maremano Urso defende, sozinho, 1.132 ovelhas do ataque de onças
O primeiro antepassado do cão que hoje se conhece surgiu há mais de 4.000 anos, nas montanhas do Tibet, Ásia. Passaram-se séculos e os trabalhadores do campo, nesse tempo, selecionaram exemplares com instinto mais propenso à defesa que ao ataque. Do país asiático, o maremano foi levado à Grécia e, posteriormente, à Itália. Quando trouxe o primeiro casal do cachorro, Cezar confirmou os quatro milênios de tradição da raça na proteção de ovelhas. 'Nunca mais perdi um animal.'

Foi a partir de 2003, entretanto, que o maremano começou a ser mais procurado. Em 16 anos de criação e difusão da raça no Brasil, Cezar presenciou bons resultados na defesa não apenas de ovelhas, mas também de bovinos - uma tendência recente. Tomou conhecimento até mesmo do emprego do cachorro, no Canadá, para afugentar os ursos que, comumente, atacavam ovinos em certas regiões do país.

Parece, no entanto, que 'eremita' mesmo, apenas o Urso. Pela experiência acumulada, e pelas vendas de 250 cães desde que entrou para o negócio, Cezar recomenda que cada lote de animais, seja de 300 ou 3.000 cabeças, seja guardado por três cachorros. 'Enquanto dois reúnem e seguram o grupo, um afronta o predador. Se o pasto estiver cercado, eles encurralam o rebanho na cerca', explica. Quando a ameaça é a onça, ela raramente ataca os cães. 'As onças só avançam em direção ao bicho desprevenido, o que não é o caso dos maremanos, sempre atentos por seu ótimo olfato e audição', argumenta Cezar.
Arthur Baumgartner utiliza os cachorros border collies tanto para o pastoreio do rebanho de ovelhas como de gado
Para dar conta das cerca de 2.000 ovelhas criadas na Marambaia para seleção genética, Cezar conta com 12 cães. Eram 16, mas quatro foram vendidos já adultos, tamanha a procura em 2008. Só no ano passado, saíram da propriedade 50 filhotes, dos quais 40 seguiram para Mato Grosso, Acre e Pará, estados que mais demandam exemplares atualmente. Nestes casos, para servir de proteção ao gado.

Guardiões de nascimento, como Urso, já impõem sua vigilância em fazendas dos mais diversos cantos do Brasil: em terras da caatinga, próximas às florestas atlântica e amazônica e ao retorcido cerrado. Em Montes Claros, MG, segundo Cezar, um criador usa seis maremanos para defender dos ladrões suas 16 mil ovelhas. No Nordeste, outros se livram de furtos no rebanho e do ataque de cachorros de outras raças. Já no Sudeste e no Centro-Oeste, a maior ameaça são onças e jaguatiricas. Em Mato Grosso e Minas Gerais, os proprietários protegem os animais até do lobo guará.

Urso e estas centenas de cães fiéis atestam também uma tendência que, de forma lenta, mas constante, se firma no país: a opção por cachorros para a realização de tarefas relacionadas à pecuária. A raça border collie, a mais difundida e utilizada em propriedades rurais brasileiras desde 1994, já alcança a marca aproximada de 3.000 exemplares em todo o território nacional. Destes, um terço, em torno de 1.000 animais, trabalham no campo, segundo André Camozzato, presidente da Associação Brasil Border Collie.

Cachorros da raça kelpie trabalham na hora de conduzir o rebanho de 700 cabeças de gado em Guaimbê, SP
Os border collies surgiram há cerca de 200 anos nas fronteiras acidentadas da Inglaterra com a Escócia e o País de Gales, no Reino Unido. Daí parte do seu nome, border, que em inglês significa fronteira. Edvaldo, da fazenda Juruti, foi quem recebeu os exemplares de 'border' que estrearam o trabalho de pastoreio no Brasil, e quem primeiro passou por treinamento para adestrar e trabalhar com os cães. A iniciativa de testá-los no campo, na época, partiu de Thomas Baumgartner, irmão do atual proprietário da Juruti, Arthur Baumgartner. Em 1993, Thomas já tinha quatro filhotes, mas precisava de alguém capacitado para treiná-los: o adestrador Ray Moss, encontrado e trazido dos Estados Unidos para Piacatu para preparar os homens e os cães, e com quem, em 1998, a revista Globo Rural fez uma reportagem sobre o aparecimento do 'border' no país.

Com Ray, Edvaldo aprendeu comandos que fazem com que os cachorros, imediatamente, busquem o rebanho contornando-o em sentido horário ou anti-horário, que se sentem, levantem ou recuem. Tarefas executadas com habilidade circense, acionadas por palavras em inglês ou ao toque de um simples - mas muito bem ensaiado - apito. Tina, Star e os outros seis border collies que trabalham na Juruti com as mais de 1.100 ovelhas e 1.400 cabeças de gado já conhecem de cor cada um deles.

A experiência também faz a diferença no mercado canino. Tina, de sete anos de idade, é apontada como a mais eficiente. Na área onde são colocadas as ovelhas prenhas e com cordeiros, a cadela só tenta duas ou três vezes conduzir as fêmeas na direção indicada. 'Se não consegue depois disso, ela respeita a decisão da ovelha de ficar com a cria e não insiste', exemplifica Edvaldo. O tempo de serviço se nota também quando os cães, por conta própria, buscam algum bezerro ou cordeiro desgarrado do grupo.

Um filhote de border collie custa hoje, em média, 1.500 reais, mas alguns criadores chegam a cobrar até cinco mil reais por um cachorro. Preço que não tem desanimado os interessados, que se multiplicam em São Paulo e Rio Grande do Sul, estados que introduziram simultaneamente a raça no Brasil, e também em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Minas Gerais, Goiás, Tocantins, Espírito Santo e Pará.

POR OUTRAS PASTAGENS
Em campos europeus, australianos e, inclusive, brasileiros, outras raças de cachorros ainda fazem ou já fizeram história no trabalho de pastoreio

BULDOGUE CAMPEIRO
Bastante empregado em fazendas de gado gaúchas na década de 70. Hoje, raramente é adquirido para trabalho.

AUSTRALIAN CATTLE DOG
Usado para reunir bovinos na Austrália e também no Brasil.

AUSTRALIAN SHEPHERD
Pastoreia rebanhos de gado no Brasil e Estados Unidos.

WELSH CORGI PEMBROKE
Utilizado para arrebanhar bovinos no Reino Unido.

WELSH CORGI CARDIGAN
Ainda visto em poucas fazendas de gado do Reino Unido.


O peão tico conta apenas com a habilidade de dois cachorros na tarefa diária de pastorear e inseminar 380 vacas
As vantagens do emprego do border collie vão além da facilidade e rapidez com que o rebanho pode ser conduzido. Arthur Baumgartner, que faz valer o ditado 'o gado engorda com o olho do dono' na fazenda Sabiá, em Guaimbê, SP, amplia a lista dos benefícios alcançados em suas criações de aproximadamente 1.200 ovelhas e 700 cabeças de gado nelore. Na lida com ovinos, o auxílio de três cães junto a um só peão permite o pastoreio nômade, em que os animais não permanecem na mesma área por mais de dois dias.
'Conseguimos reduzir muito o problema de verminoses e de casco, já que tanto a larva dos vermes como a bactéria causadora do casco não têm tempo hábil para infectar o animal', comemora. O sistema também vem possibilitando a aplicação de vacinas e vermífugos no próprio pasto, e que as ovelhas não compitam em área com o gado, pois são deslocadas constantemente para áreas ociosas. Tanto o rebanho ovino quanto o bovino, segundo o criador, ficou mais manso depois que começou a conviver com os cães. 'Hoje, pegamos uma ovelha com a mão sem que ela saia correndo, coisa difícil no manejo convencional', conta.
Já no pastoreio e manejo do gado, Arthur trabalha com dois empregados e cinco cães, dois border collies e três da raça australiana kelpie, um pouco mais forte, mas igualmente dócil. Aruan, o kelpie xodó do criador, não se intimida diante de animais cujo tamanho é ao menos quatro vezes maior que o seu. Aos comandos em suíço-alemão do dono - filho de suíços -, corre pela esquerda e pela direita, toca a boiada para frente e, de vez em quando, dá uma mordiscada na canela dos mais turrões.
Depois de dois anos tendo os cães caminhando aos pés de seu cavalo, Arhtur celebra a experiência exitosa. 'Se eu não tivesse os cachorros, precisaria de quatro peões, e não dois, para cuidar destas 700 cabeças. Além disso, o gado fica menos arisco com o homem', explica. O custo, para fechar com chave de ouro a questão, é baixo: segundo seus cálculos, um real diário por cachorro, além de cuidados básicos como vacinas e vermífugos.
Nas proximidades da fazenda Sabiá, a pouco mais de 20 quilômetros dali, Arthur arrendou, junto com um sócio, uma área de pouco mais que 480 hectares, onde cria 380 vacas para transferência de embriões. Na fazenda Vila Rica, um só peão, Ademilson Alves Rodrigues, o Tico, é responsável por todas as tarefas que a rotina da propriedade inclui, entre as quais pastorear as vacas e separar as que serão inseminadas. Trabalho solitário, como o de Urso, viável apenas porque Tico conta com a ajuda de dois cães, Back e Nick, misturas da raça border collie com kelpie.
'Para o serviço que eu faço, é importante que o cão tenha características do kelpie. Ele é mais mordedor para lidar com os bois teimosos. Pode até tomar coice, mas tenta de novo puxar o animal para junto do grupo', explica Tico. Em atuação solo ou em grupos de iguais, em nome de seu dono ou do rebanho que adotam como família, os cães de pastoreio provam que o melhor amigo do homem ainda tem muito para ofertar. Uma nova amizade que, no Brasil, está apenas começando.

Bem antes de empregar cachorros no pastoreio de rebanhos, os produtores rurais brasileiros já contavam com o apoio canino para guardar suas casas e em antigas caçadas. Há décadas, cães como o pastor alemão, rottweiler, dogue alemão, boxer e fila protegem as famílias do campo, mas, em meados dos anos 90, deixaram de ser tão procuradas. A principal razão do desinteresse foram as misturas entre raças diferentes, na opinião de Eric Bastos, vice-presidente da Sobraci - Sociedade Brasileira de Cinofilia Independente, entidade de registro de pedigrees e canis.
A partir de 2008, no entanto, a busca por cães de guarda, em especial rotweillers e pastores alemães, voltou a crescer. De acordo com Eric, a motivação vem do número cada vez maior de pessoas adquirindo chácaras ou casas de campo. Do total de cães vendidos, 30% têm seguido para proprietários rurais e 50% para o estado de São Paulo.
Quando o assunto é caça, a proibição por lei da atividade inibe uma maior procura por cachorros caçadores. Ainda assim, raças como golden retriever e retriever do labrador, por se populizarem em filmes e livros, são cada vez mais demandadas para companhia. Beleza e inteligência, para Eric, são os grandes atrativos.
'Como no Brasil não se realizam provas de caça, o aumento do número de criadores decorre das vendas para uso doméstico.'

Foi-se o tempo em que cachorros, gatos e outros bichos eram apenas animais de estimação. A julgar por uma indústria de pets cada vez mais criativa, que apresenta todos os anos novidades como colchões magnéticos, joias, cosméticos e hotéis fazenda com chalés individuais para cada animal, fica claro que a bicharada já conquistou sua cadeira de honra em lares do campo ou das grandes cidades.

O Brasil possui hoje a segunda maior população de animais domésticos do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. São 28,8 milhões de cães, 13 milhões de gatos e 4 milhões de outras espécies de companhia, que renderam às empresas do setor, em 2007, um faturamento de mais de 9 bilhões de reais. A previsão é que o balanço de 2008 feche com um saldo 5% maior, segundo Lígia Amorim, diretora-geral da Nielsen, empresa organizadora da maior feira brasileira do ramo, a Pet South America.
Os produtos alimentícios foram responsáveis por 75% da receita de 2007. Mas a tendência é que outros segmentos ganhem maior expressão no mercado.
'Atualmente, no Brasil, o setor de serviços, como hotéis e atendimentos veterinários, responde por 13% do total de dividendos, enquanto em outros países esse número sobe para até 28%', ressalta Lígia. Produtos de saúde e embelezamento correspondem a 7% do negócio, e equipamentos e acessórios, 5%. A diretora explica por que aposta numa expansão ainda maior em todas as áreas. 'Os pets passaram a ser mais um membro da família. Há muito espaço para crescer.'


Edição 280 - Fev/09
Globo Rural