Que ninguém pense, contudo, que esse rústico boiadeiro não tem potencial para a vida urbana. Seus predicados como cão de cidade existem e não são poucos (veja A raça no asfalto). A Austrália, sua terra natal, que o diga. Lá, onde cerca de mil exemplares da raça são registrados anualmente, o Australian já esteve, como aqui hoje, concentrado em áreas rurais. De aproximadamente 20 anos para cá, tudo mudou. Com a implantação de técnicas avançadas na pecuária, viáveis sobretudo em nações endinheiradas, a Austrália reduziu significativamente o uso do cão na condução do gado. Quem explica é o australiano John Chandler, criador da raça há 58 anos e secretário do Australian Cattle Dog Social Club of North Queensland: “Agora, temos helicópteros e motocicletas ajudando no trabalho de pastoreio e condução. Por isso, o Australian, embora ainda seja empregado em sua função de origem, deixou de ser uma peça tão fundamental na nossa pecuária; hoje estimo que apenas 25% do plantel da raça esteja em atividade nas fazendas, os outros 75% estão em áreas urbanas e semi-urbanas, atuando como cão de companhia e guarda.”
Mesmo que atualmente a Austrália o utilize menos como cão boiadeiro, ela trabalhou duro para desenvolvê-lo (veja A formação da raça). Foram mais de 80 anos em busca do perfil canino ideal para a função. A meta não poderia ter sido mais bem atingida. O Australian se transformou num legado para as nações que, a exemplo do Brasil, praticam uma pecuária, por assim dizer, mais primitivista. Ou seja, que adota técnicas rudimentares e na qual cão, cavalo e homem são os pivôs do trabalho. “O uso do cão na condução da boiada não é novidade no País, a novidade é o Australian, cujo desempenho é incomparável”, sentencia Régis.
Já o Australian tem o instinto de se posicionar atrás do rebanho e de morder seus integrantes apenas no calcanhar. Mesmo assim, morde e solta, em vez de segurar. É a chamada beliscada ou mordiscada, método perfeito para que se tenha êxito nas várias tarefas desempenhadas pela raça, cujo objetivo comum é o de tocar o gado. Ou seja, estimulá-lo a andar. “Seja para levá-lo de um pasto para outro, seja para conduzi-lo ao caminhão de transporte ou ao curral, o ideal é um cão que saiba desempacá-lo ou apressá-lo; nada é mais eficaz para isso do que uma mordiscada no calcanhar”, explica Régis. O cão que agarra o boi pelo focinho é mais apropriado para o serviço de imobilização, que não é exatamente o que se espera de um condutor de boiada. “Esses cães já foram muito importantes quando precisávamos paralisar o boi para vaciná-lo ou para tratar seus ferimentos, mas hoje temos áreas de contenção, como o brete, nas quais essas atividades são desempenhadas sem que seja preciso segurar os animais”, esclarece a agropecuarista e bióloga Irene Laure, de Pedro Afonso, em Tocantins, onde também cria Australians. O Border Collie, por sua vez, está inclinado a agir como no pastoreio, que é sua especialidade. “O instinto do Border é de reunir o gado e não de tocá-lo; ele circunda os animais em vez de andar atrás deles”, esclarece o criador e adestrador Janott Coelho, de Porto Velho, também presidente do Kennel Clube de Rondônia. Além disso, muitos dos exemplares dessas raças latem excessivamente durante o trabalho. “O boi se estressa com os latidos e pode até avançar sobre os cães para se ‘livrar’ deles”, pondera Régis. O Australian raramente late em serviço. Herdou o estilo silencioso de seu ancestral selvagem, o Dingo. Também veio dele a impressionante resistência a temperaturas elevadas e a jornadas extenuantes de trabalho, muitas vezes desempenhadas em condições precárias e em terrenos acidentados. Esse parente das selvas transmitiu ainda ao Australian boa parcela de seu destemor, agilidade e espírito combativo, características essenciais na lida com animais que manifestam seu desagrado com coices e chifradas e que quase sempre pesam ao redor de 15 a 30 vezes o peso de um cão de porte médio: um boi atinge de 400 a 1.000 quilos; um Australian não chega aos 30. “É impressionante ver um Australian em atuação”, atesta Janott. “Ele corre por horas debaixo do sol forte; salta obstáculos; enfrenta áreas de vegetação fechada e capim cortante; às vezes cai, mas se levanta prontamente; consegue se esquivar de coices e chifradas; e nunca se intimida, vai para cima da boiada como se ignorasse por completo o tamanho e a força dos bichos que conduz.”
Como em qualquer atividade de risco, no entanto, acidentes acontecem. A maioria, de pouca gravidade. “De vez em quando um dos cães leva um coice de raspão ou um tranco qualquer e acaba precisando de uns dias de descanso para se recuperar”, comenta Régis. Fatalidades trágicas, embora mais raras, às vezes ocorrem. “Infelizmente, alguns exemplares se machucam seriamente ou mesmo morrem durante o trabalho”, lamenta Janott. A habilidade do Australian de desviar de chifradas violentas e coices rápidos nem sempre está nos seus melhores dias. “A atividade com bois é perigosa; uma breve desconcentração, um leve cansaço fora de hora ou uma simples passada a mais ou a menos podem significar uma tragédia numa fração de segundos”, pondera o adestrador. Sem dúvida, a sorte tem seu papel, mas o elemento principal para evitar o pior é o preparo do cão.
Fonte: PETBRAZIL
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