Embora todas as características necessárias para o bom desempenho da função de boiadeiro estejam arraigadas no Australian, só o instinto não faz dele um cão de sucesso no campo. O treinamento é fundamental. “Um Australian sem treino não só fica mais vulnerável a acidentes como até atrapalha no manejo do gado”, comenta Aike. “A tendência natural dele é tocar os bois o tempo todo, impedindo que pastem ou descansem”, explica a criadora. O mais comum é que os próprios fazendeiros ou peões se encarreguem do condicionamento dos cães, mas há adestradores especializados nesse treinamento. E, na opinião de muitos especialistas, trata-se do treino mais arriscado da espécie canina. “Nenhum outro adestramento lida rotineiramente com o risco iminente de acidentes como o dos cães boiadeiros”, compara Janott, que há 25 anos adestra cães para diversas modalidades, como guarda, busca e salvamento, cão de polícia, ring, KNPV, obediência e boiadeiro. “Nem o treinamento dos farejadores de explosivos ou dos cães de resgate em escombros é tão arriscado, porque os exemplares não têm acesso a explosivos de verdade e praticam exercícios em ambientes simulados e controlados.”
Já na lida com o boi, há pouco controle e nenhuma simulação. Embora com algumas variações, o método de adestramento para o cão boiadeiro é mais ou menos o mesmo no mundo todo. O primeiro passo é selecionar os mais aptos da ninhada. “O fato de a raça ter sido aprimorada para a função não significa que cem por cento dos exemplares nasçam adequados a ela”, comenta Régis. “Há uma minoria que não se interessa pelo gado, que procura distância dele; esses cães têm baixo potencial para a atividade.”
O filhote promissor é aquele que demonstra curiosidade ao ver bois e outros animais da fazenda. “A maioria dos Australians, mesmo quando tem apenas 2 ou 3 meses de idade, já presta atenção no gado, quer se aproximar, correr atrás dele”, conta Janott. Nessa fase da vida, contudo, o recomendado é não promover nada mais que uma apresentação entre espécies. “Duas ou três vezes por semana, a gente os leva ao pasto para que observem bois e carneiros por alguns minutos”, conta o adestrador. Durante esse processo, que deve levar alguns meses, os cães também se acostumam com a presença constante do homem a cavalo. “Eles precisam entender que o cavalo é um parceiro e, portanto, que não deve ser conduzido”, acrescenta. Quando os jovens Australians voltam sua atenção aos eqüinos, são desencorajados com gestos ou com o comando “não”.
O treinamento propriamente só costuma ter início quando os cães atingem de 6 a 12 meses. Parte dos criadores prefere os exemplares que beiram 1 ano. “Nesta idade, o cão tem mais coordenação, já conhece bem seu corpo e seus reflexos; a tendência é que se saia melhor e que se machuque menos”, opina Irene, que se encarrega pessoalmente do treino de seus Australians. Mas há quem opte por iniciar as aulas antes. “Desde que o treino seja leve, é possível passar conceitos básicos para cães de 6 meses”, diz Janott.
Tanto num caso quanto no outro, é comum que o Australian estréie no ramo enfrentando carneiros. “Além de menores que os bois e, portanto, menos capazes de machucar seriamente o cão, os carneiros são assustadiços, o que contribui para aflorar o instinto combativo do Australian”, explica o adestrador. As aulas geralmente acontecem no chamado redondel, uma espécie de curral circular, assim projetado para que carneiros e outros animais não se refugiem nos cantos. O Australian é solto no meio deles e passa a persegui-los, estimulando-os a se mover. “O comportamento de andar atrás dos bichos e de mordiscá-los é inato à raça; a gente só vai lapidando esse instinto”, ensina Janott. Essa lapidação consiste em estimular ou desencorajar a atitude do cão por meio de gestos e comandos verbais ou assobiados. “Se ele morder forte demais, a gente emite energicamente o comando ‘pára’; se deixar de morder, a gente o incentiva, falando ‘toca’”, ilustra.
O tempo para que o cão responda a essa etapa inicial varia de exemplar para exemplar: geralmente leva de duas semanas a dois meses. Quando estiver desenvolto, é hora de encarar os bezerros no pasto, fase em que também aprenderá os outros comandos necessários para a função. São eles: “vai”, para seguir em frente; “devagar”, para diminuir o ritmo; “direita”; “esquerda”; “olha pra trás”, para que veja algum animal desgarrado e o reconduza ao grupo; “vá pra trás”, para que se dirija ao final da boiada; e “pra água”, para que possa se refrescar, bebendo água e mergulhando nela. Isso mesmo: mergulhando. Os Australians não só adoram água, como precisam dela para se recompor do serviço puxado. “Eles trabalham em dias e horários muito quentes; se não puderam beber e entrar na água, podem até morrer de insolação”, avisa Janott. Seja no açude do pasto ou nos bebedouros da boiada, os cães não hesitam: “Quando escutam o comando, saem como loucos e se arremessam na água”, descreve. A pausa para o banho não é longa, mas serve também para acalmar os cães. “Às vezes, eles ficam muito agitados durante a atividade, é como se estivessem com excesso de energia; uma refrescada ajuda a relaxá-los”, acrescenta Janott.
Passada a etapa dos bezerros, vem a dos garrotes, na qual as únicas novidades são o tamanho e a força dos conduzidos. Por fim, o Australian está graduado para liderar os gigantes. O treinamento completo leva ao redor de 6 meses, mas pode ser instável. “Às vezes um cão de ótimo desempenho com os garrotes, passa para o boi adulto, leva um coice de cara e se traumatiza”, atesta o adestrador. “Nesse caso, só nos resta recolocá-lo na etapa anterior ou mesmo reiniciar do zero, com carneiros, para que ele readquira confiança”, explica. E nem pense em ensinar um Australian na base do castigo ou de broncas exacerbadas. Esses cães precisam, sim, de voz firme, mas quem convive com eles afirma: não admitem desaforo. “Se você extrapolar na repressão, ficam chateados e o largam sozinho no pasto; e não adianta chamá-los porque só voltam se e quando passar a chateação”, avisa Janott. Teimosia? Não deixa de ser, mas os criadores garantem que ela é bem-vinda. “O Australian tem de ser independente e um pouco turrão para desempenhar bem sua atividade; se não fosse, desistiria de tudo no primeiro coice”, avalia.
Em nome da independência e do espírito teimoso, treiná-lo para obediência básica costuma ser contra-indicado. Pelo menos quando se deseja transformá-lo num boiadeiro por excelência. “O treinamento de obediência faz com que o cão se foque no ser humano, que queira estar sempre perto dele, submisso a ele; o boiadeiro canino precisa estar focado na boiada e encarar o Homem apenas como parceiro”, esclarece o adestrador. E a parceria costuma ser vantajosa para ambos. O Australian não só demonstra adorar o trabalho rural como, diferentemente dos cães especializados na guarda de rebanhos, que permanecem tempo integral com a bicharada da fazenda, encerra o expediente junto com o colega humano. “Depois do batente, ele costuma ser recompensado com a companhia quase permanente dos donos”, observa Régis. “É o Labrador do pessoal do campo; vai para casa, vê TV com a família, passeia de carro e tudo o mais.” Do ponto de vista humano, além da sempre agradável presença de um bom cão, a vantagem da parceria é medida pela economia de funcionários: um único Australian treinado, acompanhado de apenas uma dupla homem e cavalo, dá conta de boiadas com aproximadamente 200 cabeças. “Sem ele, um rebanho desses só seria devidamente manejado com duas ou três duplas de homem e cavalo”, compara Janott.
Fonte: PETBRAZIL
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